Recebido a 19 de Janeiro 2016, junto com as notas:
Numa terça-feira, dia 27 de Outubro do ano passado [2015] assistimos ao plenário onde discutiram o pedido da acusação com vista à prorrogação da nossa detenção. Essa reunião foi realizada nas novas instalações da Audiência Nacional caracterizadas pela sua tecnologia de ponta, asseio e um certo ar de solenidade. Aparentemente, esse era o primeiro dia de funcionamento, ou seja, estávamos a inaugurar essas dependências dos tribunais o que foi acompanhado por uma série de problemas técnicos que ridicularizaram tanta pretensão tecnológica.
Sentadxs em frente dos juízes, da fotografia do rei e da bandeira espanhola, ouvimos a exposição do Ministério Público e foi quando tivemos uma grande surpresa; aos factos pelos quais somos imputadxs há dois anos foi adicionado mais um: tentativa de homicídio, na modalidade de terrorismo *. Isto pela pessoa que sofreu ferimento leve num ouvido por causa da explosão no interior da Basílica del Pilar. Claramente reflecte uma estratégia do Ministério Público para garantir a nossa estadia mais dois anos na prisão e aumentar o peso jurídico e mediático da acusação.
Outra das “surpresas” foi sabermos que os juízes da sala, passando por cima da sua legalidade reverenciada, tinham realizado trabalhos de instrução da causa ao requerer diligências a um julgado de Saragoça, actividade que não lhes compete. Portanto, a decisão de prorrogação da prisão preventiva já estava tomada anteriormente.
Agora o que está por vir é o pedido da acusação **, em relação aos anos que nos pretendem trancar e, em seguida, o julgamento.
O sustento inquisitorial do Estado Espanhol é manifesto, como pudemos apreciar nesta sessão. O legado de Torquemada impresso a sangue e fogo continua vigente na ação punitiva da sociedade democrática enfeitiçada pela miragem cidadã que suplica pelo fortalecimento do Estado e dos seus Direitos. A renúncia de ideias e práticas a juntar-se ao claro interesse que o Estado Espanhol concede ao arrependimento e a uma petição de clemência são expressões desta tradição que procura aniquilar a vontade de luta dos seus/suas inimigxs; representa em definitivo uma perversa e subtil maneira de eliminar qualquer tentativa de dissidência e confronto.
O confinamento em alas de isolamento é, segundo penso, outra expressão inquisitorial – uma vez que corresponde a uma estratégia de poder referida à tentativa de quebrar personalidades, aniquilar convicções e identidades. Isolam-se xs indivíduxs em prisões dentro de prisões – com a pretensão de que rompam com os seus espaços afins e recusem no final as ideias que os levaram à prisão. A desconexão cria camadas de silêncio misturadas com a multiplicidade de interpretações que se vão acumulando uma após outra – provocando absorção e confusões em cada indivídux isoladx que tenta fazer o panorama a respeito a uma ou outra situação na solidão das quatro paredes, as quais, aliás, são muito más conselheiras.
As últimas detenções confirmam de forma irrefutável que o Estado pretende aniquilar o anarquismo de forma rápida e eficaz. Tal afirmação creio que não seja exagerada; somos mais de 40 pessoas imputadas sob acusações de terrorismo em quatro operações policiais diferentes, repressão que não guarda relação com o nível de conflituosidade existente. Isto é inegável e basta observar os autos da prisão para o corroborar. Portanto, o que estamos a viver é uma tentativa clara por parte do Poder de varrer e acabar com a dissidência que não se enquadra – e que seja contrária – aos moldes cidadãos. Ou se aceitam as regras do jogo democrático e se leva uma prática política dentro dos marcos institucionais ou vai parar à prisão. Assim, claramente. Conversão ou aniquilação. Torquemada ainda vagueia pelos corredores onde a infâmia é forjada.
A presidente da Câmara da cidade de Madrid, Manuela Carmena, há alguns meses, teve uma frase reveladora nesse sentido: “A coisa boa é que os jovens que antes levavam a sua prática política à margem das instituições agora apostam nelas.” Penso que as detenções em massa de anarquistas estão intimamente relacionadas com o auge da instituição de cidadania, que são duas faces da mesma moeda – são o polícia bom e o polícia mau, é a brutalidade e a subtileza democrática do Poder que se complementam para acabar com aquelxs que tentam tomar o controle das suas vidas. Diante deste panorama complexo e adverso penso ser necessário estarmos conscientes desta intenção de aniquilamento e das diferentes formas em que ela se manifesta para lhe fazer frente de maneira radical – sem se cair em miragens cidadãs e democráticas, ainda que a prisão seja já uma realidade para muitxs. Esta posição não tem nada a ver com posições mártires ou heróicas – trata-se apenas de entender a prisão como parte da luta, onde nada termina e tudo continua. Creio ser indispensável tanto manter e aguçar discursos e práticas antagónicas como quebrar a passividade e a inacção para se apostar num confronto real com o Poder. As portas que se abrem, juntamente com os seus direitos sociais, só procuram gerar e aumentar a servidão voluntária, isto é, que sejamos nós próprixs os polícias, incapazes de lhe opor qualquer resistência. Nesta realidade em que o Estado é omnipresente, praticamente atmosférico, é impossível fugir e levar uma vida longe dos seus tentáculos, sendo, portanto, inevitável o confronto. Assim, o questionamento individual ligado à negação e confronto com o existente resulta imprescindível na luta pela libertação total. É a autonomia individual – movida pelas nossas próprias capacidades e paixões – que constitui o suporte da nossa auto-construção, na busca e na prática da liberdade intransigente.
Francisco Solar
Outono 2015
* Nota adicionada: Afinal, a acusação de “assassinato em grau de tentativa sob a modalidade de terrorismo” só foi usada como pretexto para se conseguir a prorrogação da prisão preventiva e não lhes foi imputada formalmente.
** Nota adicionada: O pedido do ministério público que reclama 44 anos de prisão para cada, saíu no passado mês de Dezembro.