Durante estes dias da conferência do G20, milhares de pessoas inundaram as ruas de Hamburgo com a sua raiva contra a polícia, a sua violência e o mundo que protegem. Já durante as semanas anteriores era bem visível a vontade da bófia confrontar cada sinal de protesto ou resistência com tolerância zero. Durante a manifestação de quinta ao fim da tarde, deixaram bem clara a sua posição mais uma vez, atacando a frente da manifestação desde o primeiro minuto. A bófia obviamente, aceitou selvaticamente a possibilidade de ferimentos potencialmente letais ao empurrar e cercar o bloco frontal da manifestação para uma abertura muito estreita da Hafenstraße, onde se estaria rodeado lateralmente por paredes de tijolo. Causaram pânico, batendo, pontapeando, lançando gás de pimenta e lacrimogéneo e disparando os canhões de água de frente e pelos lados. Muitas pessoas tentaram fugir subindo as paredes laterais, muitas pessoas magoaram-se – mas era possível ver também momentos impressionantes de solidariedade, pessoas ajudando-se umas às outras para saltar por cima dos muros enquanto outrxs atacavam a polícia de cima e linhas frontais corajosamente e calmamente defendiam a manifestação dos ataques da polícia, sustendo um espancamento sério.
O bastão na cara, o joelho no pescoço, a pimenta nos olhos estavam lá para te lembrar quem estava no comando do mundo. Durante estes dias, os representantes e líderes dos 20 mais ricos países do mundo encontraram-se para discutir a manutenção desta ordem de miséria. Dezenas de milhares de polícias deviam proteger esse espectáculo daquelxs que procurariam mostrar abertamente a sua raiva, ódio e resistência aquelas autoridades arrogantes.
Na noite de sexta-feira muitas pessoas optaram por recuperar alguma da dignidade que nos é roubada diariamente, atacando a bófia em diferentes e múltiplas partes da cidade. Barricadas foram construídas e com martelos, pedras e fogo abriram inúmeras brechas nas fachadas da sociedade na qual apenas aquelxs que funcionam de acordo com ela, consumem e lhe obedecem encontram o seu lugar. As barricadas da noite ainda não tinham sido completamente extinguidas quando os primeiros carros começaram a ser consumidos pelas chamas na manhã de sexta-feira. Em diversos pontos de toda a cidade, grupos começaram a juntar-se, deixando claro que estes dias ultrapassam em muito aquilo que se poderia considerar um simples ataque a uma reunião de líderes de estado. Entre outros alvos, as agências imobiliárias, carros luxuosos, o tribunal de menores, bancos e as fachadas brilhantes dos átrios das galerias comerciais foram atacados e também os primeiros polícias tiveram de fugir debaixo da chuva de pedras e garrafas. Numa miríade de locais da cidade grupos bloquearam com assentamentos e manifestações, sem que as pessoas que escolhiam meios diferentes se atrapalhassem.
Na sexta-feira, a raiva irrompeu com uma força muito rara neste contexto (infelizmente) – claramente para conquistar a tranquilidade mortal da vida civil, quebrar a normalidade e perturbar o funcionamento da cidade dos ricos e do consumismo – mostrando que o estado policial não nos pode impedir de viver, constituindo uma experiência fortalecedora, sem dúvida alguma.
Ainda na sexta-feira, uma parte do espaço que as autoridades tomaram pela força bruta, para fazer actuar este espectáculo de poder, foi retomada por algumas horas.
Com barricadas em chamas e ataques firmes contra a polícia, as pessoas criaram um espaço onde podiam finalmente decidir o que queriam fazer durante algumas horas, sem que as forças do Estado tivessem qualquer controlo ou influência. Algumas lojas e supermercados foram saqueados e individualidades levaram o que quiseram ou necessitavam, outrxs decidiram destruir símbolos deste mundo mortal de consumo, que mortifica cada sensação de vida selvagem e livre, queimando-os nas ruas. A diversidade de individualidades que compartilharam as ruas neste dia – atacando a polícia, saqueando e construindo barricadas – foi impressionante e envolveu um grande número de pessoas que provavelmente não fazem parte de qualquer meio de protesto.
Quando qualquer auto-proclamado porta-voz, de quem quer que seja, diz que os confrontos foram fora de tom, irresponsáveis e apolíticos, apesar do profundo desgosto que nos causa o seu oportunismo adulatório é necessário dizer que está certo: tomar um espaço que não é controlado por polícias é um acto inevitavelmente violento e uma disrupção clara do que nos é imposto diariamente. Na verdade não tem nada a ver com qualquer agenda política ou programa de qualquer movimento ou organização- mas com o individual, com uma re-apropriação total das nossas vidas.
Se esses momentos de disrupção criam um certo desconforto ou mesmo medo de uma situação, na qual a ordem imposta estava verdadeiramente fora de tom, não é de espantar – estes sentimentos são parte inevitável e inerente do rompimento com esta realidade.Além do reconhecimento disto temos de nos perguntar de quem é o medo ou de quem estamos a falar. Se é sobre uma sociedade saciada e rica como a presente nesta cidade de consumo e comércio, assustada com a sua propriedade e que encontra no saque de bens e na destruição de zonas comercias os momentos mais assustadores destes dias, essa sociedade precisa de ser destruída. O seu medo é um sinal claro de que estamos a atingir o ponto certo.
A nossa domesticação neste mundo de autoridade é muito extensa.
O polícia na nossa cabeça é muito persistente.
Apenas alguns/mas podem imaginar o que significa realmente a ausência de autoridade
– é por isso que temos de criar momentos onde possamos fazer a experiência dessa ausência. Que xs indíviduxs tomem decisões que no rescaldo possam não parecer corretas ou responsáveis não é surpreendente. Nem nestas situações nem em nenhuma outra situação na vida. Temos de falar sobre estas coisas, obviamente, se nos queremos aproximar de uma ideia de liberdade. Tem de ser claro, então, que não há objectividade – especialmente na revolta. Responsabilidade individual e iniciativa daquelxs que a querem manter, são partes inerentes da revolta.
É fácil cair no discurso imposto pelas autoridades e preservadores desta ordem. Aquelxs que arriscaram a vida de pessoas de forma viciosa, nestes dias, eram polícias – não há dúvida alguma sobre isso. Cair naquela propaganda inflamatória e deixá-la controlar o momento libertador e fortalecedor destes dias seria um erro grave.
Durante este fim-de-semana, a resistência deixou o campo do protesto orquestrado politicamente – e de novo se torna claro que sob o chapéu da revolta há que escolher lados.
Ou estás do lado que procura ver esta sociedade, esta ordem, este sistema em ruínas- com a ideia de uma vida em liberdade e dignidade, abraçando todos os erros e triunfos que são inerentes à revolta; ou estás com aquelxs que reconhecem que se sentem mais confortáveis num domesticado e calculável ambiente de protesto, que ocorre no quadro seguro do sistema totalitário – com medo de tomar passos que nos possam levar na direção dos frios e vastos campos da liberdade.
anarquistas pela revolta social
Hamburgo, Verão 2017